Semana sim, semana também, aparece uma nova polêmica no mundo da moda. Pode ser uma trend esquisita, uma peça inacreditável num desfile, um unboxing milionário, ou um look de celebridade no tapete vermelho que vira meme em 10 minutos. (Aliás, é possível que enquanto escrevo esse texto, essa polêmica já tenha sido substituída pela próxima, mas vamos lá.)
E nessas ocasiões, lá vem a moda como sujeito da frase.
A moda é opressora.
A moda ainda obriga as mulheres a usarem looks desconfortáveis.
Mas afinal… quem é a moda?
Porque quando a gente coloca a moda como sujeito da frase, fica parecendo que a moda é uma entidade (quase sobrenatural) e não o produto de um sistema complexo que manifesta valores e ideais socioculturais.
Moda não toma decisões.
Moda não age sozinha.
Moda não existe sem as pessoas que a fazem: quem cria, quem vende, quem veste, quem comenta.
E por que isso importa?
Claro que é mais fácil colocar a Moda como vilã — porque isso, inclusive, nos exime da responsabilidade de reconhecer nossa participação nesse sistema. O problema, afinal, é o Outro, e e eu tenho nada a ver com isso. Mas acho fundamental despersonificar a moda para que a gente consiga analisar de fato quais são os interesses que estão em jogo.
E a Marina Ruy Barbosa nessa história?
Bom, essa semana, a gata apareceu em várias fotos, seguidas de inúmeros artigos por conta do vestido que ela usou no festival de Cannes. O que chamou atenção, aliás, não foi exatamente o vestido, mas o que o vestido fez com o corpo dela. Os ombros da ex-ruiva estavam completamente roxos. Uma coisa realmente horrorosa. E quando questionada do motivo, ela explicou que o vestido pesava quinze quilos. Isso mesmo. Quinze quilos.
E lá vieram os comentários:
“Pobres mulheres! Olha como a moda é opressora!”.
Mas será que o problema é a moda?
Ou o fato de uma mulher privilegiada — rica, branca, padrão, famosa — ter escolhido usar um vestido que machuca?
É aí que eu queria chegar.
É preciso separar o que é a opressão da forma como reagimos a ela. Não estou negando, de forma alguma, que nós, mulheres, sofremos opressões das mais diversas, incluindo a pressão da beleza. Mas sofrer opressão não significa aceitar tudo passivamente, sem crítica, sem negociação, sem resistência.
Me interessa muito pouco esse feminismo que pinta as mulheres como coitadinhas, sem agência, sem escolha, sem capacidade de dizer “não”. Esse feminismo que, tentando defender, acaba reforçando a mesma narrativa que sempre nos foi imposta: a de que somos passivas diante da opressão.
Só que essa nunca foi a nossa história.
As mulheres sempre resistiram.
Sempre improvisaram, contornaram, reinventaram.
É preciso lembrar disso a todo tempo para que a gente não sucumba à opressão por puro fatalismo. Como se não houvesse razão para questionar porque, afinal, não adianta de nada mesmo.
A própria história da moda mostra isso.
Não foi a Chanel quem inventou o uso de calças pelas mulheres — as mulheres já usavam antes. As feministas, as operárias, as esportistas, ou seja, as mulheres que, de alguma forma, já estavam questionando e expandindo os limites de seus papéis sociais.
Chanel apenas colocou a calça na alta costura. O que é bem diferente. Ela validou o uso das calças para a elite. Essa, sim, sempre muito resistente às mudanças, porque, afinal, não tem por que querer mudar um sistema que as privilegia, não é mesmo?
E aqui a gente volta pra Marina.
Ela podia escolher outro vestido.
Poderia ter ido confortável, elegante, bem vestida, toda glamourosa.
Poderia até ter escolhido algo tão icônico quanto — sem se machucar.
Mas não escolheu.
E quando a gente trata essa escolha como se fosse o retrato de “todas as mulheres”, aí sim estamos caindo numa armadilha. Porque, reforça a ideia de que precisamos ser como Marina e que não temos nenhuma agência sobre nossas escolhas.
Então quem são essas mulheres?
Porque não dá pra colocar no mesmo saco a mulher que depende de transporte público, trabalha em pé o dia todo, vai no supermercado, leva filho na escola (tudo ao mesmo tempo, bom lembrar), e a mulher que atravessa o tapete vermelho com um look que paga o ano todo de salário de muita gente.
Não dá pra tratar como “opressão feminina” o que, às vezes, é mais sobre vaidade elitista — validada pelo sistema porque vem embrulhada em glamour e likes.
Enquanto isso, do lado de cá da realidade, o que cresce é o desejo por roupas práticas e confortáveis. Ouso dizer que a maior transformação cultural da moda nesta década foi a roupa esportiva virar roupa de toda hora.
A alta costura, por exemplo, vem passando por uma crise visível. A venda de saltos altos está em queda, como apontou uma matéria recente do Business of Fashion. Nas passarelas, esse tipo de peça aparece com cada vez menos frequência. A dança das cadeiras entre diretores criativos, a dificuldade de adaptação das grandes maisons, a perda de relevância de alguns desfiles… tudo isso aponta para uma falha enorme dessa Moda, com M maiúscula, representada pela elite, de responder à demanda por uma moda que faça sentido para o agora.
A estética do desconforto parece não estar sendo questionada em voz alta. Mas, na vida que acontece fora das telas, está sendo categoricamente rejeitada.
Muitas mulheres, inclusive celebridades, já não se submetem a desconfortos extremos. Kristen Stewart, por exemplo, apareceu no mesmo festival usando shorts e camisa. Jennifer Lawrence arrasou nos pijamas chiques.

Ou seja: não é que não exista escolha.
É que algumas mulheres escolhem continuar alimentando o mesmo ideal estético que sempre foi usado pra controlar, punir e limitar.
E aí a crítica precisa mudar de lugar.
Porque, em casos assim, eu sempre acho que o questionamento não é:
“Por que mulheres se submetem à moda dessa maneira?”
Mas, sim:
“Por que mulheres privilegiadas e com poder de escolha escolhem perpetuar estruturas de poder?”
Afinal, “mulheres” é uma categoria ampla — e nada homogênea.
AMEI esse texto!
Nossa, adorei. Baita reflexão.