mate-me por favor, Ramones e uma história sem censura da moda
Que o movimento punk tem uma estética fortíssima, que influenciou inclusive a moda das passarelas, não é novidade pra ninguém, certo? Mas sabendo disso, quero propor algumas reflexões.
(...) antes da música ficar toda politizada e discursiva, houve um punk americano que era pura emoção. Lendo Mate-me por favor, me senti como se estivesse lá... Espera um pouco, eu estava lá. Este livro conta como foi. É o primeiro livro a fazê-lo.
William Burroughs
Mate-me por favor é a história definitiva e nunca antes contada sobre os anos 70 e a Blank Generation. Narrando o nascimento do que hoje se chama punk, desde a Factory de Andy Warhol até o Max’s Kansas City nos anos 60 e 70, chegando ao Reino Unido nos anos 80, Legs McNeil e Gillian McCain apresentam a explosiva trajetória do mais incompreendido fenômeno pop.
Em centenas de entrevistas com todos os personagens originais, incluindo Iggy Pop, Patti Smith, Dee Dee e Joey Ramone, Debbie Harry, Nico, Wayne Kramer, Danny Fields, Richard Hell e Malcolm McLaren, penetra-se nos camarins e nos apartamentos para reviver o que começou nas entranhas de Nova York como uma pequena cena artística e se tornou uma revolução da música. Mate-me por favor revive os dias de glória do Velvet Underground, Ramones, MC5, Stooges, New York Dolls, Television e Patti Smith Group e disseca a morte do punk, quando este se torna manchete de jornais e uma nova onda para os retardatários.
(Trecho tirado da resenha da L&PM Editores)
Por essa introdução, dá pra sentir o que me trouxe até aqui, certo!?
Alexander McQueen, em sua coleção de estreia. Inverno, 1995.
Que o movimento punk tem uma estética fortíssima, que influenciou inclusive a moda das passarelas (Alexander McQueen sendo um excelente exemplo disso), não é novidade pra ninguém, certo? Mas sabendo disso, queria propor algumas reflexões:
1. Toda ética tem uma estética
Como diz a semiótica e, em especial, Ana Claudia de Oliveira (aka, minha orientadora de mestrado), conteúdo é forma e forma é conteúdo. Essas duas coisas não se separam.
Quando uma revista escolhe uma imagem que vai pra capa, a iluminação, o enquadramento, as cores, a posição das pessoas, isso tudo conta uma história que é carregada de sentido, é forma e é conteúdo, é estética e é ética.
(Não confundir ética com moral, aqui estou usando a palavra "ética" no sentido de "conjunto de valores que compõem o modo particular de ser do indivíduo, reflexão à respeito da moral vigente e das interações humanas de modo geral".)
No que diz respeito ao movimento punk, ideias e crenças diferentes sobre estética, por exemplo, estão sendo expressas por meio da moda e da indumentária.
As classes dominantes possuem um conjunto de ideias e crenças, a ideologia dominante, e as classes subservientes um conjunto diferente de ideias e crenças: ambas as ideologias podem encontrar sua expressão na moda e na indumentária.
O punk usa a moda e a indumentária para desafiar a ideologia dominante e contestar a distribuição do poder na ordem social.
E é nesse sentido que:
Moda e identidade também são políticas, portanto, no sentido de que constituem um meio pelo qual identidades e posições de gênero e de classe podem ser contestadas e desafiadas.
Malcolm Barnard
2. Não é porque uma estética é forte que ela é calculada
Se o punk tem uma estética tão forte e tão reconhecível ainda hoje é de se pensar que ela tenha sido minuciosamente calculada. Mas não!
Malcolm McLaren e Vivienne Westwood, em 1976. Foto de Leee Black Childers.
Na verdade, os Sex Pistols foram a primeira banda a ter uma estética pensada e produzida, aliás, por alguém que não era um membro da banda: Malcolm McLaren e sua então parceira de vida e de trabalho, a maravilhosa Vivienne Westwood é que conceberam a estética da banda. Mas os Sex Pistols nasceram quando o punk já estava quase morrendo.
A estética punk – que também é um pouco mais diversa que nosso imaginário, pense em Patti Smith, Iggy Pop, Velvet Underground, Ramones – era uma expressão genuína dos modos de vida daquela galera. Eles eram marginais (no sentido de alguém que vive à margem), quebrados, inconformados, não se encaixavam e faziam questão disso. E muito importante, o punk também era uma resposta aos hippies - bons moços, paz e amor, vamos todos nos amar. Os punks eram contra esse ideal que eles achavam chato, bobo, ilusório.
Andy Warhol (o segundo a partir da esquerda), Nico (a primeira da esquerda) e a banda Velvet Underground.
Ou seja, não é que um indivíduo primeiro se identificasse como um punk e então passasse a usar a vestimenta, mas a vestimenta era parte da constituição de um indivíduo como um punk. E uma parte muito importante, como fica bem claro no livro!
Não tinha um deles que não estivesse bem ciente de que a estética era parte fundamental da interação entre eles e os outros do mesmo grupo ou entre eles e quem não fazia parte do grupo
3. Pessoas, ideias e estéticas envelhecem
Tanto isso é verdade que o Dee Dee Ramone conta que, em determinado momento, na época que antecedeu a saída dele dos Ramones, ele não aguentava mais aquele visual!
O visual dos Ramones é, sem dúvida, um dos mais icônicos do rock: camiseta, calça jeans ajustada, jaqueta de couro, tênis e aquele cabelo com franjão. É tão icônico que eu, que nem fã de Ramones sou, uso esse look com frequência até hoje! Hahaha
O visual dos Ramones não foi nada calculado, era o que eles usavam. Talvez a coisa mais pensada tenha sido a camiseta com o logo criado pelo designer Arturo Vega que, como eles contam, era praticamente, o quinto membro dos Ramones.
Essa deve ser uma das camisetas mais copiadas da história do rock, até a Renner já vendeu! Certeza que tem gente que nem sabe o que é Ramones com uma dessas no armário.
Acontece que o visual pegou!
Tem uma passagem maravilhosa que eles contam que o Joey Ramone que, originalmente, era o baterista, virou o vocalista porque ele era esquisitão. Na época, todo mundo queria ser o Mick Jagger ou o Iggy Pop, magrelo-sexy-rebolante, e eles acharam legal o Joey ser grandão e desajeitado. A música também era descomplicada, com rifles simples, a volta da música de 3 minutos, sucedendo a época dos solos de guitarra de 10!
O que os Ramones fizeram na época vinha na contramão do que o que outras bandas de rock vinham fazendo. O visual, a música, a performance, era tudo mais simples. (Percebem como tá tudo amarrado?)
Pois bem, acontece que nessa época, eles eram moleques de 20 anos, fodidos, sem grana e sem nada a perder. O Dee Dee fala que quase 20 anos depois, ele ainda tinha que ter aquele visual e ele tava cansado disso. Ele não era mais um moleque de 20 anos, fodido e quebrado, afinal!
Eu também estava farto do visual de garotinho, o corte de cabelo tigela e a jaqueta de motoqueiro. Eu não queria ser um garotinho. Eu não crescia. Quatro sujeitos de meia-idade bancando os delinquentes juvenis. Eu estava ficando cheio de tocar num show de revival. Me sentia como um impostor parado lá metido numa jaqueta de couro e com jeans rasgados – como eu costumava me vestir quando pensava que era um merda imprestável.
Dee Dee Ramone, no livro Mate-me por favor (p. 606)
Fiquei pensando que, se isso não é uma boa mostra de como o estilo muda com a gente, porque afinal, nossas escolhas vestimentares são uma forma incrível e poderosa de expressão, eu não sei o que seria!
Pra mim, o legal de pensar moda, é pensar como esse corpo vestido é parte significante da cultura e como toda nossa interação com o mundo e com as outras pessoas é permeado por esses paninhos que a gente envolve nosso corpo!