O fim do salto alto?
Poderia ser tema do ENEM, mas é só mais uma realidade do mundo pós-pandemia que nós, consultoras de estilo, precisamos entender, discutir e refletir com profundidade. Desde 2020, o interesse por saltos altos sofreu uma queda de 65% nas vendas, segundo dados do Valor Econômico e do NPD Group. Uma estatística significativa, mas que, para muitas mulheres, já era uma vivência cotidiana.
O salto alto, por muito tempo tratado como símbolo máximo de elegância e poder feminino, começou a perder espaço não por falta de apelo estético, mas por excesso de incoerência com a vida real. Afinal, o aumento do trabalho remoto confundiu as fronteiras entre roupas de trabalho e de lazer, o bem-estar, com sua estética do conforto, é o novo símbolo de status e as práticas esportivas vêm crescendo não só em popularidade, mas como símbolo de status também.

As regras existem para serem quebradas, o mundo muda todos os dias e um novo modo de vida pede novas prioridades.
Até aí, tudo bem, né?
Mas, para minha surpresa, quando publiquei esse panorama no meu Instagram, trazendo esses dados e reflexões, o post explodiu. Recebi uma avalanche de comentários, reações, concordâncias e revoltas (sim, revoltas).
Teve gente que comemorando essa nova liberdade de escolha e conforto, claro. Gente que dizia: “finalmente!”. Mas também teve quem se sentiu pessoalmente atacada, como se o post fosse uma condenação ao salto. Como se apontar uma tendência de mercado fosse o mesmo que proibir um símbolo de identidade.
E aqui, acho que vale dizer com todas as letras: em nenhum momento eu disse que está proibido usar salto, que é feio usar salto ou que é cafona usar salto. Eu mesma tenho alguns pares aqui, reservados para momentos específicos. Mas fato é que a demanda atual aponta para outro lugar. E ignorar isso é fechar os olhos para as transformações culturais em curso.
Meu ponto não é criticar quem gosta ou usa salto, é ampliar a discussão para além do gosto pessoal. É olhar para esse movimento como uma expansão de possibilidades.
Hoje, o mercado de moda, oferece uma variedade real de opções para quem quer estar bem-vestida sem perder a mobilidade. É libertador saber que não existem apenas duas opções: o salto ou o tênis. Temos hoje uma profusão de modelos de sapatos baixos — sapatilhas de todos os modelos, loafers, mules, oxfords, rasteiras sofisticadas, que oferecem beleza e acabamento sem exigir dor ou instabilidade.
Essa mudança é visível também na prática da consultoria. Em quase todos os meus atendimentos (e nas discussões da comunidade Stylebreakers) o salto alto aparece cada vez mais como exceção e cada vez menos como norma. Muitas clientes ainda o mantêm no guarda-roupa, mas para ocasiões muito específicas.
A maior demanda tem sido conforto + praticidade. As minhas clientes são mulheres ocupadíssimas, que equilibram pratinhos da carreira, da vida familiar, social, prática esportiva… O look precisa dar conta desse movimento.
Mas é curioso observar como essa conversa ainda toca em pontos tão sensíveis (e foi justamente isso que me chamou atenção nos comentários do meu post!). Basta falar de conforto que alguém ouve desleixo. Basta falar de comportamento coletivo que alguém entende imposição individual.
E talvez isso diga mais sobre o peso simbólico do salto do que sobre o sapato em si. Durante décadas, saltos altos funcionaram como marcador de gênero, classe e status. Subir num salto era, muitas vezes, a única forma de ser levada a sério em certos espaços. Ele dava altura, postura, presença — mas também dor, instabilidade e medo de cair.
Por isso, quando alguém diz que se sente mais poderosa de salto, eu entendo. Mas me pergunto: é poder de verdade ou é o tipo de poder que nos forçaram ensinaram a desejar?
Essas perguntas me atravessaram ainda mais forte na última aula do Styletelling, quando discutimos o conceito de elegância pela perspectiva da semiótica. Ao analisar o que os manuais de consultoria e os dicionários chamam de "elegância", fica claro como essa ideia está profundamente associada à conformidade com normas sociais dominantes.
Elegância, no imaginário tradicional, exige contenção, harmonia, descrição, sobriedade, postura, autocontrole. E, quase sempre, um corpo magro, silencioso e submisso. O que se vende como “bom gosto” é, muitas vezes, um conjunto de códigos burgueses que delimitam quem pertence e quem não pertence a determinados espaços sociais.
Na prática, a mulher “elegante” é aquela que não incomoda. Que não fala alto. Que não mostra demais. Que não usa chinelo nem em casa. Que não tem poros aparentes. E, que precisa de um homem para apoiá-la porque seus saltos altos não trazem estabilidade suficiente. Percebem como não estamos falando apenas de saltos?
Quando a gente começa a desmontar esse castelo de códigos, percebe que o salto alto, assim como a alfaiataria neutra, o coque polido, a maquiagem discreta e os tons pastel, fazem parte dessa fantasia de neutralidade que, na verdade, está carregada de poder simbólico.
Por isso, quando falo que o salto perdeu força, estou falando de um sintoma, não de uma sentença. O que me interessa é justamente pensar no que essa mudança revela. Revela uma abertura. Revela uma fissura no discurso da mulher perfeita e submissa. E não sou romântica, sei que esse discurso tem voltado com força. Mas, como me interesso muito pela dissidência, penso que também existem mulheres que não estão preocupadas em ser ou parecer elegantes, mas, sim, em ocupar seus espaços. E vamos combinar: é mais difícil ocupar um espaço quando você mal consegue ficar de pé por horas seguidas.
Aqui está, talvez, a grande virada de chave: há uma rejeição da feminilidade rigidamente definida, que associa os saltos altos ao marcador primário da feminilidade — e, mais do que isso, a um padrão feminino que reproduz comportamentos da elite. Afinal, para a mulher que pega transporte público, anda a pé, vai ao supermercado e cuida dos filhos, o salto alto não é sinônimo de elegância, mas de imobilidade.
Não estamos falando de abrir mão da estética. Conforto e beleza não são conceitos opostos, conforto não é oposto nem mesmo de elegância.
Como disse a Barbie de Greta Gerwig ao descobrir que seus pés haviam se tornado planos em vez de arqueados artificialmente: "Eu nunca usaria salto alto se meus pés tivessem esse formato."
(E já que o assunto é esse: na próxima newsletter a gente vai mergulhar de vez no tema da elegância. Mas com olhar crítico, histórico e simbólico. Porque elegância não é só sobre o que se veste, é também sobre o que se aceita como norma. E isso, sim, merece ser desconstruído.)





