Você não é uma Polly Pocket
Tem umas duas semanas, eu fiz mais um ensaio de fotos profissionais e, como acontece toda vez, aquela roupa que eu amo, uso muito, que me deixa segura e feliz, acaba ficando meio estranha em algumas fotos.
Eu amo peça estruturada e volumosa e aí basta um ângulo diferente ou um movimento mais exagerado para o tecido cair de um jeito esquisito, criando volumes, vincos, dobras que não ficam assim tão bem na foto.
Nas primeiras vezes que fiz fotos, isso me deixava muito, mas muito frustrada. Mas, com o tempo, aprendi que isso não significa nada sobre a roupa, nem sobre mim. Uma foto ruim não desqualifica nem o look, nem meu corpo e nem minha beleza.
Mas esse texto não é uma egotrip sobre minhas fotos, eu prometo.
Uma foto é só uma captação bidimensional e estática de um momento, registrado sob uma luz e um ângulo específicos. Já a vida, essa é bem diferente: tridimensional, com movimento, com luzes e perspectivas que mudam a cada segundo.
Pode parecer óbvio, mas, de uns anos para cá, eu percebo que essa noção anda cada vez mais distante para muita gente. E a consultoria de estilo é um ótimo observatório para perceber isso.
No provador, na experimentação de peças, o comportamento é quase um ritual: a pessoa veste, vai até o espelho, mas antes de se olhar com calma já puxa o celular para registrar uma foto.
Não importa que a iluminação fluorescente deixaria até Margot Robbie desfavorecida. Não importa que a pose tá meio truncada, desajeitada e com expressão tensa. Muitas vezes, é esse clique que vai definir que aquela roupa não funciona e ponto final.
E aí começam as implicâncias: “essa dobra na barriga”, “esse vinco na perna”, “esse volume no braço”. Acontece que eu, que tô ali, ao vivo, tô vendo outra coisa. Eu sei que aquela dobra só aparece naquela posição específica e que, na vida real, ninguém vai nem reparar.
Quantas peças perfeitas não foram compradas por defeitos inexistentes!
E eu tenho minha teoria para explicar porque isso acontece.
Nossa convivência diária com imagens hipereditadas cria uma expectativa completamente inatingível. E para além dos padrões históricos de beleza, magreza, juventude e branquitude, a gente adicionou uma nova camada de exigência: a da roupa que nunca amassa, nunca vinca, nunca dobra. Como se a gente fosse uma Polly Pocket, sabe?
Já tive cliente incomodada porque a calça jeans dobrava no joelho ao andar. Física básica: tecido rígido em uma articulação só vai se mover criando um amontoado de tecido. Mas quando a gente internaliza a ideia de que uma peça boa é aquela que se comporta como numa foto produzida, tudo parece um defeito.
É o mesmo raciocínio que empurra os corpos pra cirurgias, os rostos pra preenchimentos e as roupas pro descarte precoce. É a busca pela performance da perfeição que, no caso da moda, também alimenta um ciclo de consumo insustentável.
E como se não tivesse complicado o bastante, temos aí entra um novo ingrediente: a inteligência artificial.
Esses dias vi no feed a foto de uma mulher recriada por IA. Mais magra, mais jovem, pele sem poros, sem manchas, sem rugas. Parecia uma boneca - e não falo isso como algo positivo, hein? A legenda dizia algo como “a IA devolvendo minha autoestima”. Mas será mesmo? Porque me parece mais “IA criando mais um padrão de beleza inalcançável”.
Bom, mas voltando ao ensaio, eu e a fotógrada comentamos que, é bem possível que, num futuro próximo, muita gente troque o ensaio fotográfico por imagens criadas por inteligência artificial. Afinal, é mais rápido, mais barato, menos trabalhoso.
Mas aí fiquei me perguntando: o que a gente perde nesse processo?
Eu aprendi muito sobre a minha própria beleza olhando para minhas fotos reais. Entendi que um clique ruim não me define. Vi que a roupa que amassa no corpo não perde valor, porque é no movimento, na vida real, que ela cumpre seu papel.
Para além da trabalheira, existe um exercício importante de autobservação que vem do processo de selecionar as roupas, testar na frente do espelho, posar, selecionar as melhores fotos. Aprender com a roupa que não funciona pra foto. Observar proporções. Lidar com as imperfeições.
A IA pode até criar roupas que não vincam no joelho e jamais marcam a barriga. Mas talvez seja exatamente isso que a gente precise continuar vendo. Em nós mesmas e nas outras pessoas também, claro.
Porque, se a gente perde esse treino de olhar para o real, perde também a capacidade de lidar com a falta, com a frustração e com a imperfeição e isso vale para muito além da roupa.
A questão é que esse treino de olhar exige tempo, repetição, convivência com o próprio reflexo.
Na consultoria, tento sempre trazer esse olhar para as clientes. Quando alguém se incomoda com um detalhe mínimo que só aparece na foto, eu lembro que aquela roupa não foi feita para ser analisada no zoom de uma tela de cinco polegadas. Ela foi feita para ser vivida. E vida envolve amassar, dobrar, sujar.
A imagem da IA é sedutora porque pode ser perfeita. Mas não é a imagem perfeita que vai saborear uma comida gostosa, sentir o sol na pele ou abraçar uma pessoa querida. Quem vai fazer ysso tudo é essa pessoa aí, de carne, osso, faltas e imperfeições, vestindo uma roupa cheia de dobras e vincos.



