por que as roupas de hoje são tão ruins?
“A qualidade das roupas caiu muito nos últimos anos.”
Essa é uma reclamação que escuto com frequência das minhas clientes.
Será que essa percepção é puro saudosismo ou essas duas percepções são realmente verdadeiras?
Me coloquei a pensar - inclusive na minha própria experiência trabalhando há quase 20 anos nesse mercado, 10 deles no varejo - e pesquisar sobre o assunto e isso é (parte) do que descobri.
E bom, não é coisa da nossa cabeça, realmente tem ficado mais difícil encontrar roupas de qualidade, mesmo nas marcas que costumavam oferecer exatamente isso. O porquê é um tanto complexo e não pretendo esgotar o assunto nesse texto, mas vamos lá!
Faça as contas: quantas peças de roupa você comprou no ano passado?
Se você é um brasileiro médio, mais ou menos, 28 peças. Nos anos 80, esse número ficava em torno de 8.
No passado, a qualidade da roupa era um atributo de venda enorme. Porque nos anos 80 e 90, as lojas só tinham roupas novas algumas vezes por ano. Geralmente, uma coleção de verão e uma de inverno. Os designers começavam a trabalhar em cada coleção com até 9 meses de antecedência, porque a produção de roupas exigia muito trabalho.
Eu vivi um pouco dessa realidade (que já estava se transformando) lá nos anos 2000. A gente fazia o planejamento da coleção, desenhava as fichas técnicas, enviava as fichas para as fábricas, e ficava num vai e vem de peças pilotos até elas serem aprovadas. Depois disso, o comprador fazia os pedidos na fábrica e era esperar que aquilo tudo vendesse. Era meio que um jogo de azar. A gente fazia duas grandes apostas por ano, e se essa aposta falhasse, a empresa ficaria com um monte de roupas encalhadas que teria que vender com desconto ou apenas descartar.
Esse risco é o porquê de tanta atenção e planejamento para fazer cada peça de roupa, e por que você poderia esperar qualidade um pouco mais compatível com o preço que estava pagando.
Nos anos 80 e 90, as pessoas estavam comprando menos roupas, mas eram peças bem feitas e que seriam vestidas por anos. Tendências? Bem, isso era algo que só pessoas ricas tinham.
Mas eis que surgiu uma loja chamada Zara, e tudo começou a mudar.
O New York Times cunhou o termo "fast fashion" num artigo de 1989 sobre a primeira loja dos EUA da Zara. "Estamos atrás da última tendência.", disse um ex-executivo da Zara na matéria.
A Zara levava 15 dias para colocar uma nova ideia nas lojas. Lembra que isso demorava 9 meses na maioria das lojas?
Não vou entrar nos pormenores de como a Zara conseguiu esse feito, mas a informação importante aqui é que a Zara conseguiu simplificar os processos e em vez de grandes pedidos, a Zara fazia um pequeno lote de cada modelo para testar. As lojas então enviavam feedbacks em tempo real para sede saber o que está vendendo e o que não está, e a sede podia rapidamente aumentar a produção do que era popular e parar a produção do que não estava vendendo tão bem. Isso reduziu massivamente o risco que vinha com a produção de roupas. Bastante parecido com a lógica dos algoritmos de redes sociais? Sim.
Bom, a Zara puxou o bonde, mas com elas outras tantas fast fashion surgiram. H&M, Forever 21, na gringa. E aqui no Brasil, nossas velhas magazines, como C&A, Renner e Riachuelo, que até então vendiam roupas e não moda também se adequaram a esse modelo.
A fast fashion fez com que qualquer um pudesse usar designs de passarela enquanto eles ainda estavam populares. Isso era algo novo. E encorajou muitos consumidores a comprar roupas de baixo custo (muito abaixo do que o custo da peça original) que iriam rapidamente sair de moda. Claro que isso se tornaria problemático e já falaremos sobre isso.
Aqui preciso fazer um desvio importante. Não podemos dar todo o crédito pela ascensão da fast fashion à Zara e H&M. Também temos que dar algum crédito a... Nafta, o acordo de livre comércio norte-americano, que fez com que fosse mais barato fazer roupas no México. E alguns anos depois, normalizou as relações de comércio com a China. As fábricas têxteis começaram a sair dos EUA, porque agora os vendedores de roupas tinham acesso ao maior pool de trabalho barato na história da humanidade.
Digo que é um pequeno desvio, porque podemos pensar que isso nada tem a ver com o Brasil e, de fato, a indústria de moda brasileira tem muitas particularidades, mas também entrou no jogo de terceirizar a produção de roupas para países asiáticos e um custo infinitamente mais baixo do que no Brasil.
Assim, não havia nada que parasse as fábricas de produzir tudo em países com salários mais baixos, leis trabalhistas inexistentes e as regulações ambientais das mais frouxas.
E assim, chegamos ao ambiente de moda que eu me lembro nos meus anos de adolescência. Nos anos 2000, você tinha mais ou menos quatro opções de compra, variando em preço e qualidade: alta moda (pense nos estilos brasileiros que desfilavam em SPFW nessa época), marcas de luxo (as mesmas até hoje), lojas de departamentos (que vendiam roupas, não moda) e lojas de shopping (que ia desde Forum e Triton até Cori e Brooksfield).
Mas, hoje em dia, parece que essa pirâmide está colapsando e tudo está um pouco mais confuso. Farm, Cori, Les Lis Blanc não costumavam ser consideradas fast fashion, mas agora, ainda que mantenham estilo mais definidos, elas operam de maneiras muito semelhantes, pelo menos, em termos de produção.
O instagram @eliza.co.uk traz toda essa premissa de uma maneira muito divertida, vale entrar e perder um bom par de horas tentando descobrir qual look é designer e qual é fast fashion.
Além disso, ainda há aquela outra enorme mudança que também impactou na qualidade das roupas: ela mesma, a internet.
As mídias sociais e a fast fashions são uma combinação feita no céu (ou inferno, dependendo do ponto de vista). As mídias sociais ajudam a reduzir a atenção, o que também amplia as tendências de moda, que circulam mais rapidamente. Isso torna a fast fashion indispensável para os influenciadores, que dependem de um fluxo constante de roupas novas para o seu conteúdo.
E isso coloca pressão em todos nós, reles mortais, para vestir uma roupa totalmente única e nunca vista antes todos os dias, o que é totalmente insano.
Acho que agora é hora de falar sobre Shein. A irmã mais caótica da Zara.
Shein não é apenas fast fashion. É moda instantânea. AZara faz produtos em 15 dias. A Shein faz isso em 3. A Zara lança 35 mil novos itens de roupas por ano. A Shein lança isso em questão de duas semanas. A Shein ganhou cerca de 10 bilhões de dólares em 2020. Ela é atualmente a maior vendedora de roupas do mundo, até mesmo superando a Amazon nos EUA.
Como eles fazem isso? Em vez de funcionar como uma fabricante de roupas, a Shein funciona como a Amazon. Ela nada mais é que um enorme mercado de roupas de milhares de fábricas chinesas independentes. E ela trata essas fábricas meio que como o Uber trata seus motoristas. As fábricas estão ligadas ao software da Shein, que recolhe feedback em tempo real sobre quais itens estão vendendo bem e quais não estão. O software então envia alertas aos proprietários das fábricsa para acelerar ou desacelerar a produção.
É a produção da Zara em esteroides.
50 anos de moda rápida e ultra rápida mudaram completamente nossa relação com as roupas. Ao invés de termos uma relação de afeto e cuidado com as nossas roupas, elas se tornaram apenas mais um produto de consumo barato e descartável.
Graças à moda rápida, a indústria de vestuário está em uma espiral descendente. Tudo é moda rápida agora. E toda essa superprodução não só afeta a qualidade da roupa. Quando empresas de capital privado e moda rápida maximizam seus lucros a qualquer custo, isso prejudica os trabalhadores em toda a cadeia produtiva têxtil. Em 2024, a escravidão ainda é uma questão.
Os preços que estamos dispostos a pagar pelas nossas roupas não refletem uma realidade em que todos os envolvidos são pagos de forma justa e trabalham em boas condições. Eles são resultado de exploração.
A moda rápida é uma história de corrupção corporativa disfarçada em preços baixos para você. Embora, como mostramos, isso não tenha realmente funcionado para os consumidores, afinal, estamos todos reclamando de má qualidade (ou pelo menos nós, millenials, que chegamos a ter contato com um outro cenário - a geração Z, que se tornou adolescente quando as fast fashion já existiam, não ligam tanto pra isso, mas isso é outra história).
E se no começo desse texto eu disse que o assunto é complexo é porque mesmo com todos esses fatos, não concordo em culpabilizar o consumidor. Como criticar quem compra na Shein num país como o Brasil com tamanha desigualdade social e pouco acesso?
Há ainda outro fator importante nessa equação: é interessante para as marcas que os consumidores saibam cada vez menos avaliar a qualidade das roupas.
Eu vejo isso na prática com as minhas clientes.
Se as gerações da minha mãe e avó sabiam o mínimo de costura, entendiam como uma roupa é feita e, logo, conseguiam avaliar a qualidade. Hoje, cada vez mais, vejo que clientes que ou compram roupas mais caras achando que preço alto é sinônimo de qualidade, relação que nem sempre é verdadeira. Ou clientes que não compram roupas de qualidade e que, consequentemente, tem um preço mais alto, por acharem que a roupa não vale tudo aquilo.
Porque a realidade é que, apesar de mais difícil de encontrar, ainda existem roupas de qualidade no mercado, mas, claro, elas vão custar mais do que uma peça de fast fashion.
Por fim, quero deixar claro que o que realmente precisamos é de regulamentações que pressionem mudanças em corporações como a Shein e as fast fashion em geral. Não é a mudança individual que vai trazer uma transformação coletiva.
Mas, enquanto isso, vale refletir sobre nossos próprios hábitos de consumo que, se terão pouco impacto no âmbito coletivo, podem fazer uma grande diferença na esfera pessoal.
Então, pense novamente em todas as roupas novas que você comprou no ano passado. Quantas delas você usou mais que três vezes? E quantas delas você ainda vai usar no próximo ano? Você poderia comprar menos e investir mais em cada item?
Puxa, muito obrigada pelo texto tão bem explicado. Há anos tenho essa percepção de que mesmo roupas de marcas caras estão com aquele aspecto barato, empobrecido e os preços mais e mais caros. Vejos as fotos das coleções e tudo parece até feito daquele tecido de fantasia de carnaval, o rayon, ou plástico, sabe? E as roupas têm recortes esquisitos com aquele caimento ruim, não sei explicar. Um exemplo: hoje, é raro encontrar vestidos ou saias longas e rodadas sem aquelas horrendas costuras horizontais, que parecem formar camadas com emendas para completar o comprimento das saias. É como se o tecido fosse escasso e as grifes usassem esse artifício para fazer o pano render mais. Fica feio. Tudo tem poliéster e as roupas não respiram. É também comum ver roupas feias e com esse aspecto pobre, com tecidos baratos custando mais de 1k, 2k, 3k... o que é um absurdo. Vê-se claramente o abuso de uso da marca e da palavra de "slow" fashion para fazer crer que existe alguma qualidade diferenciada nas peças, só que essa pretensa qualidade não parece refletida no aspecto das roupas, por causa desses artifícios de emendas nas saias, tecidos pobres e péssimo caimento, que vestem mal até os corpos esqueléticos das modelos, quando elas fazem aquelas posturas estranhas para posar para as fotos. Vejo esse aspecto empobrecido e essa falta de cuidado até em roupas nas vitrines da Oscar Freire, daquelas grifes alternativas nas biutiques da Vila Madalena e Pinheiros, no site Farfetch, no Galerist, na Pinga Store. E nem vou me estender muito falando dos tamanhos que estão cada vez menores. Eu tenho roupas muito boas em couro com acabamento perfeito, compradas no início dos anos 2000, numero 42 e que servem em mim até hoje. No entanto, com a modelagem atual tão pequena só consigo usar 46 ou GG. E tirando as medidas com a fita métrica eu vejo mesmo que o numero 42 das minhas roupas do passado se tornou o número 46 do presente, o que significa que querem economizar nos tecidos para fazer mais peças. E até o couro ficou mais vagabundo, muitas vezes substituído pelo tal "couro ecológico" que é a pior enganação feita de plástico que já vi. É muito marketing para pouca qualidade.
E eu achei que só eu estava incomodada com isso. Mesmo procurando textos com a mesma opinião nas buscas do Google não encontro muita gente reclamando. Só aparecem resultados exaltando o uso do poliéster, links patrocinados das lojas fast fashion e etc. Tudo é feito para estimular o consumo desenfreado, normalizar a aceitação da baixa qualidade, manipular a percepção do consumidor escondendo essa realidade. Daí, quando comento com outras pessoas, poucos percebem o que eu vejo e continuam comprando as porcarias que as lojas ofertam. Enfim, não sou expert em moda, nem consumidora assídua, mas sou designer gráfico e tenho olhos para detalhes. Também sou exigente e não estou disposta a ficar gastando meu suado dinheiro em um vestido de marca cara, alternativa, descolads, slow fashion, mas que usa poliéster, vusta 2,5k e que parece roupa da Shein. Não dá. Rsrsrs. Desculpe pelo textão.